quinta-feira, 25 de junho de 2009

Serras da Desordem.

Este é o treiler de Serras da Desordem, um dos melhores filmes nacionais desses tempos. Um caldo e tanto.
A direção é de Andrea Tonacci, montagem de Cristina Amaral.

As cartas...

As cartas... As cartas de minhas tias para a minha avó sempre começavam com suas "saudações cordiais" que logo eram seguidas por "nessas mal traçadas linhas" conseqüência de um sem número de rumos mal traçados que as fizeram migrar para São Paulo. Estava aprendendo a ler e, sentada no chão perto do fogão a lenha, tentava decifrar para minha vó o que realmente as tais mal traçadas linhas queriam dizer. Muitas vezes, por minha falta de destreza com as letras, ou mesmo, pela falta de precisão da grafia tinha que interpretar e dar contorno as notícias. Também comecei a pensar que o que estava escrito poderia nem ser exatamente o que fora ditado, ou seja, proferido por minhas tias. Ler em voz alta aquelas cartas se tornava uma brincadeira de telefone sem fio.


Com os anos, só porque fiquei uma verdadeira especialista em leitura de cartas, as endereçadas a minha vô foram diminuindo, diminuindo até não serem mais postadas. Ela até chegou a me ditar algumas, pedindo notícias, pedindo que a viessem visitar, mas eram sempre devolvidas. As cartas e a esperança de reencontro foram ficando amarelas e emboloradas. As lembranças dos rostos que se despediram vão se apagando, tornaram-se uns quadros antigos na parede cujos traços estão borrados.


Recentemente, instalaram um orelhão aqui em Buquim, nosso povoado. Em mim uma esperança se renovou, quem sabe uma de minhas tias também tenha telefone e faça alguma tentativa! Porém, o orelhão em frente à capelinha não significou para minha vó a diminuição da distância entre ela e suas filhas, pois já cansada de esperar e por conta dos anos de lida dura, sua vida estava por um fio.


O orelhão era disputadíssimo, no domingo depois da missa, a fila era enorme, pessoas fazendo e recebendo ligações. Ao desligar o ritual seguinte era o de ir passando de casa em casa contando as novidades que acabavam de ouvir do parente distante. Desta forma, muitos mal entendidos de anos foram resolvidos, muitas notícias tristes dadas, fofocas atualizadas e muitos alívios sentidos ao saber que ainda está vivo alguém se se gosta.

Era um dia sem filas no orelhão e ele toca. As crianças já tinham até inventado uma brincadeira para decidir quem iria atender, depois do 1..2..3.. e já! Quem falasse o nome de todos os donos das casas do povoado o mais rápido possível, sem errar, podia atender. Não era tão difícil assim, pois se tivesse umas 30 casas no povoado era muito, além das horas a fio que passavam treinando repetindo e repetindo.


Estava a debulhar espigas de milho, quando ouvi Zé Piaba, filho de Justino de seu Ernesto, batendo na porta de minha vó dizendo que era telefonema de São Paulo, corri pra lá e o menino esbaforido disse que estavam querendo falar com ela. E este era fato inédito no povoado, nossa família nunca tinha recebido uma ligação.


Corri e atendi. Do outro lado da linha uma voz longe, muito longe diz ser minha tia. Fiquei muda por alguns instantes e depois me apresentei, nunca tínhamos nos visto, depois senti um silêncio com ruídos de respiração. Choro. E mamãe..como está mamãe...Respondo: triste e doente. A voz diz que quer falar com ela. Pedi que ligasse novamente dali alguns minutos e desliguei.


Imediatamente todos se mobilizam para que minha vó pudesse ir até o orelhão: os homens se propuseram a carregar a cama, as mulheres cuidar para que ela estivesse agasalhada. Em sua boca vi um esboço de sorriso enquanto o pessoal adentrava sua casa.


O telefone toca, atendo e passo pra ela. De um lado da linha a filha tenta dizer tudo o que ficou calado por anos, a voz quase inaudível do outro lado parece reconhecer quem está falando, mas é preciso que fale mais alto, muito mais alto. Lágrimas escorrem do rosto de minha vó quando parece ouvir a voz das outras filhas, responde “Deus lhe abençoe” e pensar que pelo menos estão unidas.


Os outros netos, meus primos, são apresentados um por um e dizem amarem a vó, mesmo a terem conhecido. Mas eu os entendo, só de saber que ainda temos uma avó viva deve ser bom, acho que como eu, ela é a única avó viva deles. No meu caso além de vó, ela também foi minha mãe e meu pai.


Após se desculpar pelos anos e anos de ausência e perda de contato, uma das filhas termina a conversa dizendo: Mãe te amo muito, hã? TE AMO MUITO não vou deixar de ir ver a senhora antes que... como aconteceu com painho. Mãe, não sei quando isto será possível, mas promete que agüentará firme? E ela responde: enquanto esperar por suas cartas viverei, promete que irá escrever?


Luciana Dias

terça-feira, 16 de junho de 2009

Acordando


No baculejar de todas as manhãs, hoje, olhava fixo para as janelas. Não via, construia imagens que ilustravam seus pensamentos.




- Tenho que... unmn ...é. Será mesmo? Que frio. Que sono. Merda, tiazinha forgada. Esse maluco tá tirando, vai encoxar a mãe!

Os braços já estavam dormentes.

- Vamo ae pesssoal, ainda cabe lá no fundo. Bora, bora!

- Seu fi de corno, você quer que eu vá onde? Tá pensando que aqui é jumento?

A tiazinha soltou sua ira no pé do ouvido dele, sem camurça, era para o cobrador mas Ele sentiu sua cabeça tilintar, sua orelha lambida por palavrões que Guimarães Rosa nunca nem imaginou, ferveu. Olhou para trás e... Não deu tempo, foi exprimido pela massa.

- Vam´bora piloto.

Ainda ficou um bom tempo na cancela olhando para a figura do cobrador. Um sujeito com cara de simpático, abria o olho uma vez ou outra para tocar o gado e acariciar o bigode, sobre a gaveta uma bíblia surrada aberta e uma toalhinha laranja ao lado. Ele não tinha o que olhar, se dedicou ao cobrador, sujeito interessante.

Passou a catraca mas os olhos no cobrador que já estava com outro ritmo, sua preocupação não era mais tocar o povo, acordava só para passar as mãos no bigode, passar as mãos no bigode e olhar para um lado até chegar devagarzinho para o outro.


- Mas que merda ele tanto olha?

- Trânsito, tempo passando, trânsito...

Agora já existe uma evolução no movimento do cobrador baixinho e bigodudo, acariciava seu bigode com os olhos aberto depois de passar os dedos na bíblia, mas o cantinho do seu olho esquerdo revelava...

- O que ele tanto olha?

Trânsito, encoxadas, burburinhos.

- Motorista seu corno! Um passageiro, como sempre.

Mais encoxadas e com licenças.

- Unnm, Ele flagrou novamente o cobrador, cruzaram os olhares, o cobrador dorme. Logo em seguida Ele rastreia os indícios, cobrador volta a abrir os olhos e....

- Nossa, como não tinha visto antes?

A graciosa reluzia, Ele percebeu que não só o cobrador mas todo o ônibus estava na mesma pegada. Ela estava sentada no banco mais próximo da porta de saída, concentrada, lia um livro mas conversava com todos em silêncio com seu saboroso perfume, brincos grandes, cabelo preso para cima com seu delicioso pescoço a mostra dos gaviões.

Ele se apressou em percorrer o tenso corredor.

- Com licença. Com licença.

- Trânsito, trânsito.

Enfim, conseguiu chegar mais próximo daquele mulherão que não era grande, mas uma vasta mulher. A proximidade tinha uns dois bancos no meio.

Para descansar da leitura, apoiava os óculos nos livros, olhava para frente e passava a mão na nuca.

- Que maravilha! Essa eu …

Ele era tímido.

- Eu, eu...

Nem sentia mais as terríveis encoxadas.

- Quer que eu segure suas coisas? Um carinha a sua frente disse.

- Ah, sim. Por favor.

Enquanto despejava sua bolsa no colo do solícito Ela levantou.
Priiiiim. Tocou a campainha.

- É, eu tenho que descer agora mesmo, Obrigado, obrigado. Pegou suas coisas todo desajeitado e saiu encoxando.

- Com licença, com licença.

O busão para, abre a porta. Ele quase chegando.

- Vai descer! Vai descer!

Finalmente chega até a porta enquanto aquela maravilha, já na calçada, o olha.

- Com licença! Vai descer!

- Ô querido, ô.

Ele olha para o lado, é a mesma tiazinha que gritara em seu ouvido.

- Sua cartira.

- Que?

- Sua carteira.

- Hã?

- Sua carteira caiu.

O ônibus fecha a porta e arranca. A tiazinha entrega a carteira para ele com uma cara de sarcástica e sorrisinho de safada.

- Tá aqui meu amor, toma. Cuidado para não ficar sem os documentos.

- Dia de merda! Ele pensou.

domingo, 14 de junho de 2009

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Mocotó de Frango. Assim que deveria se chamar, e não Twitter.

No fim de semana

Você sabe temperar carne?

- Ei, ô! Sabe temperar carne?

- Carne?

- É, carne moída.

- Isso é muito fácil. Você não sabe?

- Não. O que eu faço?

- Bota sal aí e já era, ô!

- E você aí sabe?

- Não, mas sei lá, não sei. Tem cebola? Alho?

Ele caminhou até a geladeira já sabendo o que o aguardara, a imagem do vazio já era constante em sua re(o)tina mas por alguns segundos queria ser um pouco mais criativo, dar um pequeno choque na lacuna entre o sonho e a possibilidade, saborear um presente diferente. O ar frio da geladeira soou como um despertador berrante de madrugadas frias, mesmo assim avistou lá naquele lugar o vidro de maionese com alhos até a boca e bem do seu ladinho o pote de cebolas, pareciam namorados tomando um vinho tinto agarrados uns aos outros. Eram os únicos habitantes daquela cidade fantasma.

- É isso memo!

- O que?

- Cebola e alho.

- Pega a panelinha aí, por favor?

- Essa?

- Isso.

- Será que tem azeite?

- Isso, põe um pouco aí, um pouco, não vai encharcar.

- E você querida, pegue aquela faca por favor?

A tristeza rondava meio que desconfiada, um felino que finge não estar.

- Vamo picar esses benditos alhos. Cuidado com essa boca menina, esse fogão não tá de confiança.

- Tem mais cebola?

- Essa dá?

- Tem que dar.

Logo agilizaram a cozinha, esquematizaram tudo, venceram as pelejas com as bocas do fogão. Azeite no fogo e o alho em cima. Tchiiiiiiiiiiiii!

O fogo disforme o fazia inventar uma cadência de panelas. Os alhos não podiam ser queimados.

Cutucou o bolso e sacou.

- Vá comprar um molho de tomate. Volte logo.

A carne com o alho se impregnava de outra cor rapidamente. Dá-lhe molho. Um molho Choio apareceu no canto do armário. Dá-lhe molho.

- Tá pronto.

- Unm, delícia!

- Tá bom mesmo?

- Um pouco gorduroso mas uma delícia.

Foi o momento mais lindo do dia.