quinta-feira, 25 de junho de 2009

As cartas...

As cartas... As cartas de minhas tias para a minha avó sempre começavam com suas "saudações cordiais" que logo eram seguidas por "nessas mal traçadas linhas" conseqüência de um sem número de rumos mal traçados que as fizeram migrar para São Paulo. Estava aprendendo a ler e, sentada no chão perto do fogão a lenha, tentava decifrar para minha vó o que realmente as tais mal traçadas linhas queriam dizer. Muitas vezes, por minha falta de destreza com as letras, ou mesmo, pela falta de precisão da grafia tinha que interpretar e dar contorno as notícias. Também comecei a pensar que o que estava escrito poderia nem ser exatamente o que fora ditado, ou seja, proferido por minhas tias. Ler em voz alta aquelas cartas se tornava uma brincadeira de telefone sem fio.


Com os anos, só porque fiquei uma verdadeira especialista em leitura de cartas, as endereçadas a minha vô foram diminuindo, diminuindo até não serem mais postadas. Ela até chegou a me ditar algumas, pedindo notícias, pedindo que a viessem visitar, mas eram sempre devolvidas. As cartas e a esperança de reencontro foram ficando amarelas e emboloradas. As lembranças dos rostos que se despediram vão se apagando, tornaram-se uns quadros antigos na parede cujos traços estão borrados.


Recentemente, instalaram um orelhão aqui em Buquim, nosso povoado. Em mim uma esperança se renovou, quem sabe uma de minhas tias também tenha telefone e faça alguma tentativa! Porém, o orelhão em frente à capelinha não significou para minha vó a diminuição da distância entre ela e suas filhas, pois já cansada de esperar e por conta dos anos de lida dura, sua vida estava por um fio.


O orelhão era disputadíssimo, no domingo depois da missa, a fila era enorme, pessoas fazendo e recebendo ligações. Ao desligar o ritual seguinte era o de ir passando de casa em casa contando as novidades que acabavam de ouvir do parente distante. Desta forma, muitos mal entendidos de anos foram resolvidos, muitas notícias tristes dadas, fofocas atualizadas e muitos alívios sentidos ao saber que ainda está vivo alguém se se gosta.

Era um dia sem filas no orelhão e ele toca. As crianças já tinham até inventado uma brincadeira para decidir quem iria atender, depois do 1..2..3.. e já! Quem falasse o nome de todos os donos das casas do povoado o mais rápido possível, sem errar, podia atender. Não era tão difícil assim, pois se tivesse umas 30 casas no povoado era muito, além das horas a fio que passavam treinando repetindo e repetindo.


Estava a debulhar espigas de milho, quando ouvi Zé Piaba, filho de Justino de seu Ernesto, batendo na porta de minha vó dizendo que era telefonema de São Paulo, corri pra lá e o menino esbaforido disse que estavam querendo falar com ela. E este era fato inédito no povoado, nossa família nunca tinha recebido uma ligação.


Corri e atendi. Do outro lado da linha uma voz longe, muito longe diz ser minha tia. Fiquei muda por alguns instantes e depois me apresentei, nunca tínhamos nos visto, depois senti um silêncio com ruídos de respiração. Choro. E mamãe..como está mamãe...Respondo: triste e doente. A voz diz que quer falar com ela. Pedi que ligasse novamente dali alguns minutos e desliguei.


Imediatamente todos se mobilizam para que minha vó pudesse ir até o orelhão: os homens se propuseram a carregar a cama, as mulheres cuidar para que ela estivesse agasalhada. Em sua boca vi um esboço de sorriso enquanto o pessoal adentrava sua casa.


O telefone toca, atendo e passo pra ela. De um lado da linha a filha tenta dizer tudo o que ficou calado por anos, a voz quase inaudível do outro lado parece reconhecer quem está falando, mas é preciso que fale mais alto, muito mais alto. Lágrimas escorrem do rosto de minha vó quando parece ouvir a voz das outras filhas, responde “Deus lhe abençoe” e pensar que pelo menos estão unidas.


Os outros netos, meus primos, são apresentados um por um e dizem amarem a vó, mesmo a terem conhecido. Mas eu os entendo, só de saber que ainda temos uma avó viva deve ser bom, acho que como eu, ela é a única avó viva deles. No meu caso além de vó, ela também foi minha mãe e meu pai.


Após se desculpar pelos anos e anos de ausência e perda de contato, uma das filhas termina a conversa dizendo: Mãe te amo muito, hã? TE AMO MUITO não vou deixar de ir ver a senhora antes que... como aconteceu com painho. Mãe, não sei quando isto será possível, mas promete que agüentará firme? E ela responde: enquanto esperar por suas cartas viverei, promete que irá escrever?


Luciana Dias

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